PINACULOS

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quarta-feira, 27 de junho de 2007

Como Sampaio tentou evitar Santana

As decisões de nomear Santana Lopes primeiro-ministro, e de dissolver o Parlamento, foram as mais difíceis de tomar nos 10 anos de presidência, conta o ex-assessor João Gabriel no seu livro, a apresentar na quinta-feira. Quando Sampaio declarou, naquela noite de 9 de Julho de 2004, que legitimaria a sucessão de Durão por Santana, estava ciente das críticas que se seguiriam, mas muito longe de imaginar a reacção do então secretário-geral do PS. Quando acabou de ler a mensagem - curta - que tinha preparado, houve perguntas gritadas pelos jornalistas, tentando ouvir mais alguma reacção de Sampaio, mas este não voltou a pronunciar palavra, saindo do púlpito de acrílico que tinha servido de base aos papéis, rumo à Sala das Bicas, para depois voltar pelo corredor dos «retratos» em direcção ao seu gabinete de trabalho. Muitos metros percorridos em silêncio e com o olhar erradio. Chegado ao gabinete, a porta fechou-se. Lá dentro só Maria José Ritta lhe fazia companhia e assim ficaram durante mais de meia-hora. Trinta minutos que se revelaram tão, ou mais, duros quanto os dez dias que o tinham conduzido até aqui. (...)
O ambiente era denso e mais pesado ficou quando as televisões assentaram arraiais no Largo do Rato para transmitir a declaração de Ferro Rodrigues. Quando a porta do gabinete de Sampaio se voltou a abrir, já o secretário-geral do PS estava demissionário e havia uma baixa a lamentar no seu universo de amizades. Os olhos do Presidente estavam húmidos. Vi-o emocionado e combalido com a perda. Ninguém, porém, se atreveu a dizer o que quer que fosse. Sampaio encostou a porta do gabinete atrás de si, tendo apenas forças para um débil «até amanhã meus senhores!» (...)
Revisitando a origem do sismo, podemos ir às Eleições Europeias de 13 de Junho de 2004, quando o PSD, tal como o Governo da altura, coligado com o PP, averbou uma pesada derrota eleitoral. Barroso declara que tinha entendido o sinal do eleitorado e que «até o considerava um estímulo para fazer mais e melhor». Depois, com o país envolvido em bandeiras da selecção e na febre do Euro-2004, começou um inesperado sussurro que disputava o «prime-time» com a equipa das quinas. Os murmúrios davam conta de que Barroso poderia ser o seguinte Presidente da Comissão Europeia. Barroso desmentiu com um peremptório «não sou candidato a nada». (...) Dias depois dos primeiros desmentidos, quando muitos já pensavam que tudo não passava de uma hipótese honrosa mas sem consequências, Sampaio intuiu o contrário. (...)
Foram duas semanas a ouvir gente, todos aqueles que ele entendeu e foram muitos. Não faltou quem lhe tenha criticado a lentidão na decisão. «Tempo? Que diferença fazia mais cinco ou menos cinco dias?», perguntava Sampaio de cada vez que a crítica lhe chegava. Hesitar pode ser, em alguns momentos, uma tentativa de escolher o melhor momento para a decisão. Mas naquele caso não se tratava de qualquer hesitação - como veremos mais adiante. Tratava-se apenas de ganhar tempo, na esperança de ver «se alguém se chegava à frente no PSD para evitar Santana». Mas ninguém se chegou à frente, apesar dos telefonemas do Presidente a Marcelo, a Ferreira Leite, a Marques Mendes e a mais uma mão-cheia de destacados dirigentes social-democratas. (...) As poucas vozes que ainda tentaram erguer-se calaram-se a seguir e o partido, embora contrariado, estendeu uma passadeira a uma personalidade tão errática quanto impreparada. (...)
Os dias de Santana
Era domingo, fim da tarde. Um dos raros dias em que a agenda do Presidente tinha ficado em branco. O calendário marcava o dia 28 de Novembro de 2004. (...) Henrique Chaves, o último de quem se poderia esperar tal acusação, anunciava-se vítima do santanismo. Logo ele, amigo do próprio e, até ai, protagonista do núcleo duro do Executivo. Pior do que a notícia da demissão era a violência do anúncio da ruptura. Chaves não se limitou a fechar a porta, estilhaçou-a. A carta que tinha enviado à agência Lusa era de uma agressividade inusitada. Além de denunciar a total falta de coordenação do Executivo, dava conta de que, afinal, aquela amizade não tinha sido feita para resistir a tudo. (...)
O sábado tinha sido demasiado largo e de gestão muito difícil para Santana. O «Expresso» trouxera à estampa dois textos que, por razões diferentes, convergiam contra o primeiro-ministro. A manchete trazia destacado a chamada de atenção para um artigo de opinião de Cavaco, onde este reclamava combate «aos políticos incompetentes». Todos viram Santana como o alvo de Cavaco. O próprio também o interpretou assim. Noutro texto, houve uma alusão ao modo como Santana tinha preparado a remodelação. Ficou-se a saber que Chaves foi o último a saber da mesma, e que tal iniciativa já estaria pensada há um mês. Revelações demasiado pesadas para o ego de Chaves que, já há vários dias, tinha de suportar as observações vexatórias, em vários, jornais e que aludiam à sua despromoção.
Os telefonemas sucediam-se a um ritmo frenético, à procura de uma reacção de Belém que não havia. Era mais prudente assim, os contornos ainda estavam indefinidos. (...) A demissão intempestiva de um ministro, só por si, era insuficiente para desencadear um processo em que ninguém, na altura, parecia estar interessado, mesmo tratando-se de um ministro que fazia parte do núcleo dos fiéis do primeiro-ministro. Mas a juntar à demissão de Chaves estava a constatação da instabilidade que se vivia no interior do Governo e que, aparentemente, começava no próprio gabinete de Santana. (...) Quando o João Serra voltou a ligar-me, nessa tarde, não estranhei o que ouvi. Sampaio tinha pedido ao seu chefe da Casa Civil para convocar o primeiro-ministro, para a manhã seguinte. (...) Quando cheguei ao Palácio segui, quase de imediato, para a sala do Conselho de Estado. Era segunda-feira e a habitual reunião da assessoria política não tinha sido alterada. Haveria reunião. Santana já tinha deixado Belém. (...)
«Meus senhores», disse Sampaio, abrindo a reunião, «independentemente da pancadaria que eu vá levar a seguir, digam-me qual é a vossa opinião em relação ao caminho a seguir?». Sampaio não se sentia diminuído por ter dado posse a Santana, em Julho, e parecia decidido a evitar que a situação se degradasse ainda mais. Apesar do curto espaço de tempo que mediava desde a tomada de posse, não era a primeira vez que a corda esticara. Um mês antes, em pleno epicentro do «caso Marcelo», já Sampaio tinha avisado de que «o copo às vezes transborda». Mas não foi aviso suficiente. O sentimento de descrença e desconfiança generalizada, mesmo em sectores que anteriormente tinham manifestado apoio àquela solução, continuavam a aumentar. O Governo em vez de ajudar a superar a crise, contribuía para o seu agravamento. O escrutínio que o Presidente fazia da presente situação tinha enterrado as poucas esperanças que, em Julho, tinha depositado neste Executivo. Já não restavam dúvidas, eram as preocupações de sobrevivência política que dominavam a actuação do Governo, incapaz de conter ou inverter os factores da crise. Mesmo assim, estava longe de imaginar a velocidade com que Sampaio assumiria a decisão de dissolver. (...)
Para Sampaio, a situação era complicada, pelo que mantinha em aberto qualquer saída para aquela indesejada crise. O Governo estava enfraquecido e as instituições começavam a padecer com a falta de credibilidade que o Governo transmitia. Havia, ainda, quem defendesse que o Presidente não devia dissolver. O Governo era controverso, já se sabia. A contestação, mesmo no interior do partido que o primeiro-ministro liderava, não era novidade e apesar de não haver pausas nas contradições, instabilidade e na vertigem mediática, continuava a haver uma maioria parlamentar que dava suporte ao Governo, embora dando já sinais de fractura. Limitava-se a assegurar a continuidade governativa, quando se impunha que revelasse capacidade crítica capaz de travar tamanho desnorte. Alguns - poucos - ainda chegaram a sugerir dar mais algum tempo a Santana, embora já ninguém tivesse dúvidas da sua incapacidade. (...)
Quando a reunião terminou, pouca gente tinha dúvidas do que Sampaio iria fazer, mas desconhecíamos a velocidade com que tudo se viria a desenrolar. Não era uma certeza, mas os sinais manifestados naquela mesa apontavam nessa direcção. Mesmo assim, Sampaio guardou reserva sobre uma decisão que «ainda estava em formação». Da reunião com Santana, nessa manhã, tinha ficado acordado que o primeiro-ministro voltaria a Belém - numa primeira versão - na quinta-feira. Mas o encontro foi de imediato antecipado para quarta-feira, uma vez que Santana tinha previsto uma deslocação oficial à Turquia que deveria ter início precisamente nesse dia. No entanto, aconselhado de que o arrastar da situação lhe seria prejudicial e difícil de gerir politicamente, a sua chefe de gabinete começa a insistir, telefonicamente, junto do João Serra, de que Santana estava em condições de ir a Belém ainda nessa tarde.
Serra demove-a dizendo que não há razões para tal. Embora houvesse indícios do caminho que Sampaio poderia vir a trilhar, ainda não havia certezas. Ana Costa Almeida insiste, desta vez propondo enviar por fax, ou informar telefonicamente o Presidente do nome do substituto do ministro Chaves. Serra volta a demovê-la, adiantando que não era só a questão do nome que estava em causa.
Ao fim dessa tarde, o Presidente tinha na agenda a assembleia-geral da COTEC (a Associação Empresarial para a Inovação, que Sampaio ajudara a fundar e da qual presidia à sua Assembleia-Geral), no edifício Picoas. (...)
Quando a assembleia-geral da COTEC terminou, Sampaio seguiu para casa onde, horas depois - poucas -, entre vários telefonemas a assessores e gente de fora que entendeu querer ouvir, tomou, em definitivo, a decisão. A reunião da COTEC não teve peso na decisão de Sampaio, pode apenas ter sedimentado, ainda mais, uma convicção que já trazia. Pouco passava da meia-noite quando João Serra recebeu o telefonema que sentenciava o Executivo de Santana. «A decisão está tomada», comunicou Sampaio. (...)
O comunicado
A agenda do dia seguinte não sofreu grandes alterações, apenas as necessárias para acomodar a audiência dessa tarde com Santana. Às 11h, e como habitualmente na rotina do Palácio, o Presidente reuniu com os assessores da área económica e social, com quem partilhou a decisão tomada na véspera. Fez o mesmo com mais alguns com quem se cruzou em momento posterior. Não foi uma atitude prudente, nem sequer era habitual nele, mas acabou por revelar, internamente, o desfecho da reunião que teria à tarde com Santana.
Ainda a hora de almoço não tinha sido ultrapassada e já alguns telefonemas começavam a chegar-me dando conta de que em alguns gabinetes governamentais a dissolução era um cenário tido por seguro. Era uma informação merecedora de crédito e que, a confirmar-se, poderia ter consequências.
Entrei no gabinete do Presidente e transmiti-lhe o sucedido, adiantando a alteração que aquela informação poderia provocar nos acontecimentos do dia. «Uma coisa é o Presidente dissolver, outra é o Santana pedir a demissão, que é uma jogada legítima de antecipação», disse, sem me sentar. Sampaio reclinou-se para trás na sua cadeira, abanou a cabeça e desabafou: «É sempre a mesma coisa, não se consegue guardar nada aqui dentro!» (...) À medida que o relógio ia consumindo as horas que faltavam para a audiência com Santana Lopes, os rumores foram crescendo, mas à falta de confirmação, assim ficaram. O primeiro-ministro, que foi pontual na chegada a Belém, ia acompanhado do seu assessor de imprensa, João Paulo Velez. (...)
Aparentemente, o João estava longe de imaginar que o desfecho pudesse ser aquele. Assim foram passando os minutos, num estranho jogo de esquivas, que acabou de forma inesperada. Ouviram-se passos apressados, que iam na direcção da sala onde a audiência estava a decorrer. Era a Susana Zarco, que transportava um maço de papéis debaixo do braço, e que, quando nos viu, a única coisa que lhe ocorreu dizer, sem abrandar o passo, foi: «Já podemos distribuir o comunicado!»
Aquela aparição não podia ser mais inoportuna. «Que comunicado?», perguntou o João. Ainda fiz um ar estranho, mas já não havia remédio. «O da dissolução», respondeu ainda a Suzana, sem parar, para desaparecer de seguida na direcção da sala das Bicas. (...) O texto era curto e dava apenas conta da decisão do Presidente de «ouvir os partidos políticos com representação parlamentar e o Conselho de Estado, nos termos do artº 33, alínea a) da Constituição da República». Estava redigido no pressuposto de que a iniciativa da dissolução partia do Presidente, e assim ficou. A sua distribuição obedeceria à indicação de Sampaio. Assim aconteceu. (...)
As três vezes de Santana
(...) Três dias foram suficientes para toldar a serenidade ostentada dias antes, em Belém. Era sexta-feira, meia-noite. Estava de saída do Hotel Mundial, na Almirante Reis, onde a Associação de Atletismo de Lisboa tinha comemorado - num jantar - o seu décimo aniversário. Quando alcancei o meu carro e rodei a chave da ignição, o rádio deu - quase de imediato - sinal de vida. Estava sintonizado na TSF, as colunas reproduziam uma intervenção irritada de Santana. (...) «A política não pode ser de segredos. Na segunda-feira de manhã (na audiência em Belém) foi-me expressamente garantido que não haveria dissolução. Fiz a pergunta três vezes, no início, a meio e no fim da conversa, e das 3 vezes isso foi-me garantido.» Eram declarações que tinham sido produzidas um par de horas antes e que, além da reminiscência bíblica, representavam um ataque de enorme gravidade à idoneidade de Sampaio. Soava a um ajuste de contas. (...) Sobre a credibilidade de Santana bastaria buscar o testemunho, na altura, do seu mais novo ex-amigo, para ver que, aquela batalha, Santana deveria tê-la evitado. Sabia, pelo testemunho do Presidente, o mais significativo do que se tinha passado naquela audiência que Santana invocava, mas o princípio era claro: a sua reprodução era proibida. Mesmo sabendo que a regra tinha sido quebrada e usada com propósitos pouco nobres. Mas nem seria necessário ir até aí. Recordava, já no alto da Avenida da Liberdade, a frase com que Sampaio iniciara a nossa reunião de segunda-feira, precisamente após o encontro com Santana. «Independentemente da porrada que venha a levar a seguir, digam-me qual é a vossa opinião em relação ao caminho a seguir?». (...) Na manhã seguinte, bem cedo, começaram os telefonemas para o João Serra. Havia dois cenários possíveis: ou uma declaração mais formal do chefe da Casa Civil ou uma reacção da assessoria de imprensa à Lusa. Partilhara com ele algumas das frases rabiscadas durante a noite e o entendimento, reiterado, de que Sampaio não deveria falar. (...) À hora de almoço, o telefonema do João não podia começar de maneira mais clara. «Ele vai falar», disparou mal atendi, «prepara tudo para o Palácio de Queluz». (...)
Quando o Presidente saiu do carro, já a noite se tinha instalado, trazia o semblante carregado. Perguntou apenas onde estavam os jornalistas, dirigindo-se para o sítio que, entretanto, lhe indicara. Agradeceu a presença deles e repetiu aquilo que os jornalistas já sabiam, pretendia fazer apenas uma declaração.
«Como compreendem não posso, nem devo, ser condicionado. Após ouvir os partidos políticos com assento parlamentar e o Conselho de Estado prestarei todos os esclarecimentos aos portugueses. Até lá, com certeza que continuarei, como sempre, a pautar a minha actuação pelos princípios de serenidade emocional, de boa fé e da lealdade institucional.» (...) (fonte: Nuno Saraiva, Expresso)

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