Opinião: DISCURSOS…
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Do discurso de Marinho proferido recentemente na Abertura do Ano Judicial, acto público presidido pelo Presidente da República, Cavaco Silva – que também não foi nada “meigo” – retive as seguintes passagens de um discurso que voltou a causar impacto e a incomodar:
o “Vivemos talvez a maior crise de sempre na Justiça portuguesa. Mas mesmo assim, em nome dos Advogados Portugueses, quero começar por exprimir um sentimento de confiança e de esperança (…) Num Estado de Direito Democrático a Justiça não tem donos, tem servidores. Todos somos servidores da justiça e todos devemos servi-la com dedicação e empenho.
o Ninguém respeitará a justiça se os seus agentes não se respeitarem uns aos outros. Nunca teremos uma boa administração da justiça, que é um valor superior do Estado de Direito, se não contribuirmos para a dignificação das diferentes funções em que essa administração se exprime (…) A justiça atravessa hoje em Portugal momentos particularmente agitados que são a evidência de uma crise profunda, sem dúvida a mais grave desde a instauração da República.
o Fizeram-se leis progressistas e generosas em matéria de direitos e garantias individuais, de entre as quais emerge, naturalmente, a Constituição da República Portuguesa, mas as suas concretas aplicações esbarraram sempre com o imobilismo do sistema e sobretudo com a incapacidade deste em assimilar o sentido progressista e humanitário dessas leis. As consequências estão à vista. As nossas cadeias estão cheias de pessoas oriundas principalmente dos sectores mais desfavorecidos da população. Temos uma das mais elevadas taxas de reclusão de toda a Europa senão mesmo a mais elevada. A pobreza e a exclusão social são as principais causas dessa triste realidade (…) Portugal aplica as maiores penas de prisão efectiva de entre os países da Europa Ocidental e também as penas mais curtas. O tempo médio de prisão efectiva por cada recluso corresponde a mais do triplo do daqueles países, incluindo alguns que aplicam a pena de prisão perpétua.
o Há jovens na casa dos 20 anos de idade condenados a penas de 15 e 16 anos de prisão por crimes de furto – unicamente furtos. Há reclusos que cumprem penas de cerca de 20 anos de prisão condenados em cúmulo jurídico por múltiplos delitos contra o património os mais graves dos quais são punidos abstractamente com penas máximas não superiores a três anos.
o Há um sentimento generalizado na sociedade portuguesa de que o sistema judicial é forte e severo com os fracos e fraco, muito fraco e permissivo com os fortes (…) No domínio da investigação criminal, fazem-se grandes encenações mediáticas para os órgãos de informação, por vezes com prisões e buscas filmadas pelas TV’s, mas depois os inquéritos prolongam-se durante anos sem quaisquer consequências dissuasoras para esses delinquentes.
o Fazem-se negócios de milhões com o estado, tendo por objecto bens do património público, quase sempre com o mesmo restrito conjunto de pessoas e grupos económicos privilegiados. E muitas pessoas que actuam em nome do Estado e cuja principal função seria acautelar os interesses públicos, acabam mais tarde por trabalhar para as empresas ou grupos que beneficiaram com esses negócios.
o Há pessoas que acumularam grandes patrimónios pessoais no exercício de funções públicas ou em simultâneo com actividades privadas, sem que nunca se soubesse a verdadeira origem do enriquecimento (…) Nas empresas que prestam serviços públicos de grande relevância social, como, nas comunicações postais, no sector das energias e no das telecomunicações, entre outros, perdeu-se há muito o sentido de servir o público em benefício de estratégias que privilegiam, vantagens para os accionistas. Agora o interesse público relacionado com as necessidades sociais desses serviços deve ceder – e cede mesmo – perante os sacrossantos interesses dos sacrossantos accionistas.
o Bens essenciais para a população, cuja prestação constitui uma obrigação constitucional do Estado, como a saúde, são objecto de lucrativos negócios de grupos económicos privados. Amplos sectores da população empobrecem e endividam-se incentivados por compulsivas torrentes de publicidade comercial apelando ao consumismo, sem que o estado exerça qualquer intervenção moderadora.
o O sobre-endividamento colectivo levou a que grande parte da população activa tenha de trabalhar durante anos para pagar os encargos financeiros de empréstimos que foram induzidos a contrair sem os devidos esclarecimentos sobre as nefastas consequências desses compromissos. Grande parte do país – pessoas e empresas – trabalha para os bancos que acumulam lucros tão escandalosos quanto os benefícios fiscais de que gozam.
Tenho uma tremenda dificuldade em perceber como é que um político, seja ele quem for, pode esperar que este discurso não encontre fácil penetração e apoio junto da sociedade portuguesa! Demagógico? Mas não será esta a realidade da nossa sociedade? Não estamos perante factos.
Luís Filipe Malheiro (in "Jornal da Madeira", 05 de Fevereiro de 2008)
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