ARTIGO: Fome
Sempre que começa um novo ano, passou a ser lugar comum falar-se muito, escrever muito, sobre os mais pobres e carenciados, sobre a fome e a pobreza de milhões de seres humanos que todos os anos, por esse mundo fora, têm direito apenas a uma rotina de sofrimento, privação e de morte. Para eles não há, nem pode haver votos de um ano melhor do que o que termina. Porque continuam a ser muitos os países, e os respectivos dirigentes, que apostam mais em gastar milhares de milhões em armas, ou em guerras patéticas, do que em despender uns tantos milhares, que seriam suficientes, no combate ao flagelo da fome, da falta de água, de saneamento básico, de assistência médica, de acesso aos medicamentos, etc. Mas é este mundo e esta sociedade que se atreve a “dar e vender” moralismos a querer transmitir esperança num discurso hipócrita que todos os anos se repete, numa espécie de ciclo tenebroso em que o mais difícil é saber quantos milhões morrerão nesse ano porque não comeram, não beberam ou não acederam aos cuidados de saúde ou assistência medicamentosa. Mesmo assim, acho que vou alinhar nessa rotina, alertando, ou tentando alertar, as consciências mais abertas. Edgar Morin (em “Os Meus Demónios”), dizia que “a crueldade entre homens, indivíduos, grupos, etnias, religiões, raças é aterradora. O ser humano contém em si um ruído de monstros que liberta em todas as ocasiões favoráveis. O ódio desencadeia-se por um pequeno nada, por um esquecimento, pela sorte de outrem, por um favor que se julga perdido. O ódio abstracto por uma ideia ou uma religião transforma-se em ódio concreto por um indivíduo ou um grupo; o ódio demente desencadeia-se por um erro de percepção ou de interpretação. O egoísmo, o desprezo, a indiferença, a desatenção agravam por todo o lado e sem tréguas a crueldade do mundo humano. E no subsolo das sociedades civilizadas torturam-se animais para o matadouro ou a experimentação. Por saturação, o excesso de crueldade alimenta a indiferença e a desatenção, e de resto ninguém poderia suportar a vida se não conservasse em si um calo de indiferença”. Em Novembro do ano passado, o Secretário de Estado do Vaticano disse que a “fome no mundo constitui um escândalo inaceitável”. Segundo ele, a "fome e a desnutrição são inaceitáveis num mundo que dispõe de níveis de produção, de recursos e de conhecimentos capazes de por fim a esses flagelos e às suas dramáticas consequências". Numa intervenção feita perante o Comité da FAO para a Segurança Alimentar, reunido em Roma para avaliar os progressos neste domínio, Dominique Mamberti, lembrou que "a realidade de multidões de pessoas, cujo direito à vida é colocado em discussão, deve ser para nós motivo de inquietação e para mexer com a consciência de cada um". "Não obstante os esforços desenvolvidos pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), pelos próprios Estados, pelas ONGs, por múltiplas associações e por, eliminar a insegurança alimentar é um objectivo ainda distante, que requer compromissos políticos, jurídicos e económicos para permitir reformas necessárias e eficazes", disse Mamberti. Para o Secretário para as Relações com os Estados a ausência de paz, as injustiças, a destruição do ambiente e a falta de serviços sanitários básicos, são as principais "causas que expõem os povos ao grave risco da fome, sem esquecer o comportamento dos países mais ricos que exploram de modo desconsiderado as riquezas dos países mais pobres, sem nenhuma compensação, e a inobservância dos equilíbrios ecológicos". Numa intervenção dura e que ganhou, por isso, grande projecção mediática nos meios de comunicação social internacionais, Mamberti acrescentou que a globalização “deve tornar a família humana ainda mais consciente de que o problema da fome poderá ser resolvido somente graças a uma estratégia de desenvolvimento global, do qual participem todos os países para o bem da humanidade". Nesta ordem de ideias, segundo ele, torna-se necessário colocar o homem no centro das escolhas económicas, distribuindo os recursos, transmitindo as tecnologias às populações locais, formando especialistas locais em todos os campos e apostando nos jovens, etc, naquilo que disse constituir “um desafio que deve partir da realidade da célula familiar”. Para Mamberti, a Igreja está "pronta a ajudar aqueles que trabalham para dar força à solidariedade internacional e para promover a justiça entre os povos, de modo particular, aqueles que estão em contacto directo com as populações”. A fome continua a ser um dos mais dramáticos flagelos do mundo dos nossos dias e que, pela amplitude e pelo impacto social e demográfico que representa, não deixa de constituir um desafio permanente à insensibilidade dos homens e dos países particularmente dos mais ricos. Dizia um especialista, num texto que sobre esta temática li recentemente, que a fome no mundo “é uma realidade dolorosa, persistente e desnecessária”, principalmente porque ela existe num mundo onde, de momento, “ainda existe suficiente terra, energia e água para bem alimentar mais do que o dobro da população humana”. Um dos problemas mais vergonhosos é que cerca de metade dos cereais produzidos é destinada aos animais enquanto milhões de seres humanos passam fome. Há cerca de 20 anos, em 1984, enquanto centenas de etíopes morriam diariamente à fome, a Etiópia cultivava e exportava milhões de dólares em alimento para o gado do Reino Unido e outras nações da Europa. Estatísticas recentes não deixam dúvidas quanto à dimensão deste flagelo: - mais de 9 milhões de pessoas continuam a morrer por causa da desnutrição e da fome; - cerca de 38 mil crianças morrem à fome todos os dias.
Luis Filipe Malheiro
Jornal da Madeira, 02 de Janeiro de 2007
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