Mulheres afegãs lutam por igualdade
Todas as manhãs, a mulher-polícia veste o uniforme, vai para o seu gabinenete na esquadra, senta-se atrás de uma secretária vazia. E espera. Ela é uma das várias agentes destacadas para ajudar as mulheres a denunciarem casos de violência doméstica. O trabalho deveria ser um dos mais aterefados da divisão: No entanto, Pushtoon, tratada por um único nome, tem um dos mais solitários.
"Na semana passada, tivémos aqui uma mulher. Antes dela, não tivémos ninguém durante várias semanas, diz, mostrando as marcas nos pulsos que ficaram de uma tentativa de suicídio há alguns anos numa prisão Taliban. "As mulheres têm medo de vir, mas nós não estamos autorizados a ir ter com elas."
"Os chefes da polícia não deixam. Dizem que é perigoso para as agentes", acrescenta. Cinco anos depois do fim da era dos Taliban, há novas oportunidades para as mulheres no Afeganistão, e esforços notáveis estão a ser feitos para melhorar o seu dia-a-dia, especialmente na capital Kabul. Melhorar o estatuto da mulher tem sido um objectivo primordial na política norte-americana no país. Condoleezza Rice, Secretária de Estado norte-americana, disse numa audição do congresso em 2005 que consagrar a igualdade para as mulheres na constituição afegã era um avanço importante para toda a região. Mas as conversas com dezenas de mulheres sugerem que cada passo em frente tem sido uma luta tremenda, A sociedade afegã continua a sentir-se bastante desconfortável com a ideia das mulheres conquistarem independência e autoridade. O reaparecimento dos Taliban tem provocado retrocessos em algumas conquistas, particularmente no sul. Se as incursões dos Taliban aumentarem, as mulheres irão perder terreno. Algumas famílias no sul que recentemente começaram a deixar as filhas ir à escola e as mulheres inscreverem-se em programas vocacionais retiraram-nas destas actividades por causa de ataques dos Taliban.
"O futuro das mulheres depende muito da segurança. Se a segurança se deteriorar, a situação das mulheres deteriora-se na mesma medida", diz Masuda Jalal, antiga ministra dos assuntos femininos. "Ao primeiro sinal de insegurança, o chefe de família quer proteger a mulher e os filhos, e a primeira coisa que faz é mantê-los em casa", acrescenta.As mulheres que conseguiram derrubar algumas barreiras não falam dos princípios constitucionais de igualdade. Antes, concentram-se no que o Corão diz das mulheres, e a importância das mães e dos lares, onde as mulheres mais velhas sempre tiveram posições de poder.
O objectivo, muitas vezes implícito, é convecer pais e irmãos, maridos e filhos que quando uma mulher tem mais poder, os homens também beneficiam. Esperam, pelo menos, que as suas filhas tenham mais escolha que elas tiveram.
As mulheres estão a aprender a conduzir, algumas a pedido dos respectivos maridos, para ajudar a família. Algumas abriram contas bancárias. Outras são presença regular como "talk show hosts" e apresentam a meteorologia e outros "news features". De acordo com Farsona Simimi, uma anfitriã muito popular de "talk shows", "está a acontecer uma revolução tranquila". Mas, acrescenta, "Não sei se vai ter sucesso." Afegão com formação e pessoas de organizações internacionais humanitárias dizem que o governo do presidente Hamid Karzai apoiado pelos EUA pouco mais fez que eliminar as restrições impostas pelos Taliban. Dos 25 membros do governo, apenas um é mulher e não há nenhuma entre os seus conselheiros mais próximos. Muitas mulheres afegãs dizem ter encorajado o presidente Karzai a fazer pequenas coisas, como fazer-se acompanhar pela mulher em ocasiões públicas, mas ele nunca o fez. Rahala Salim foi uma mulher que se tornou juiza nos anos 1980 durante o regime comunista e recorda o terror que foi quando os Taliban desmantelaram quaisquer vestígios de protecção das mulheres. "Como juiza, quando as mulheres vinham ter comigo a chorar porque tinham abusado delas, sentia que tinha a obrigação de defender os seus direitos", recorda Salim, que foi destituída do cargo pelos Taliban. Segundo as leis deles, acrescenta, "se um homem fosse acusado de violação, era a mulher que era encarcerada e culpada".
Pela sua formação em direito, Salim sabia que a Sharia, ou lei islâmica, dava às mulheres alguma protecção legal. O Corão e os "hadiths", os ditos do profeta Maomé, permitem várias interpretações. E o Islão antigo glofica algumas mulheres, incluindo a filha de Maomé Fátima, que é retratada como uma líder independente do seu povo.
"É preciso conhecer a verdadeira Sharia, temos de saber apontar as passagens do sagrado Corão e dizer "Aqui, leiam isto"", diz Salim. "Na história islâmica, os homens têm sido os chefes. Querem ser os chefes para sempre. É por isso que não querem que as mulheres apareçam em público, mas isso não é o Islão."
Esta visão do Islão como pilar de liberdade veio da mãe de Salim.
"A minha mãe não teve filhos e, por isso, o meu pai casou com outra mulher. A minha mãe ficou muito triste e a sua vida ficou muito mais difícil. E ela disse-me "Se não te educares, nunca conseguirás fazer frente aos homens. Tens de aprender o Islão para que possas lutar contra eles."
Durante a era Taliban, Salim começou a ensinar o Corão. Uma vez por semana, 70 mulheres juntavam-se em aulas, algumas vezes em casa de Salim, outras vezes em sítio incerto para que os Taliban não desconfiassem.
"Cozinhava qualquer coisa como se nos estivéssemos a juntar para uma refeição e, depois, recitávamos passagens do Corão e discutíamos questões islâmicas e assuntos políticos", recorda. Depois da fuga dos Taliban, Salim candidatou-se ao parlamento. Mas ela sabia que que iria precisar do apoio dos mullah e, quando foi eleita, pediu para se dirigir às famílias na mesquita. O apelo de Salim abriu as portas para fosse permitida a entrada às mulheres. Na sua região, as mulheres nunca lá tinham entrado. Ficavam em casa.
"Foi a primeira vez que as mulheres viram o interior de uma mesquita". diz. Depois, com a concordância dos mullah, pediu às famílias para começarem a mandar as filhas para a escola. Outras mulheres chegaram a conclusões semelhantes: para conseguirem convencer os homens a estarem do seu lado, precisavam de ter os mullah como aliados e o Islão como escudo. Jalal, antiga ministra das mulheres, organizou encontros de mullah para discutir as interpretações do Corão dos direitos das mulheres. Um encontro no Verão passado em Kabul juntou 100 mullah de várias zonas do país. Jalal também pediu a formação de assembleias de mulheres para trabalharem de perto com com os mullah locais. Para já, estas assembleias estão activas principalmente em Kabul e arredores. Em Chakadera, uma região na base das montanhas a cerca de uma hora do norte de Kabul, Maseema Sakhi funciona como ligação do Ministério dos Assuntos das Mulheres. Uma pequena e graciosa mulher de 45 anos, Sakhi estudou na universidade e é professora na escola primária local. Mas ela casou com um homem da cidade e vive numa casa de lama típica do Afeganistão com várias gerações da família, com galinhas e perús a correr pelo quintal. Tentou aproximações aos mullah locais e, agora, quando há problemas domésticos, eles já pensam na hipótese de ir ter com ela. Há pouco tempo, uma rapariga chegou à vila com roupas esfarrapadas e exausta. Tinha fugido da família do marido. Disse que tinha sido espancada e que tinha medo de morrer.
No passado, os anciãos e o mullah teriam obrigado esta rapariga a revelar a sua origem e ela seria "devolvida", quase que a condenando à morte. Desta vez, o mullah chamou Sakhi. "Ela andou pelas montanhas durante três dias e três noites sem parar. Tinha os pés desfeitos. Disse que tinha uma vida tão infeliz em casa que só queria ser devorada por um animal selvagem. Levámo-la ao departamento de assuntos femininos e ela agora está num abrigo e trata-me por mãe."
Pushtoon, a mulher polícia, nunca se viu como uma paladina. A sua mãe morreu quando era criança. Criada pelo pai na província de Logar, a sul de Kabul, aprendeu a ler de forma rudimentar. Aos 13 anos, casou-se com um homem muito mais velho. Aos 15, teve o primeiro de seis filhos. A família mudou-se para o Paquistão, onde o marido, quase sempre desempregado, envolveu-se com uma mulher mais nova. Deprimida, confusa e com pouca percepção de como os Taliban tratavam as mulheres, Pushtoon regressou a Logar para tomar posse de um pequeno terreno que o seu pai lhe deixara quando morreu. Ela queria vendê-lo para ajudar a familía. Mas os Taliban prenderam-na, com a acusação que ela teria morto o marido, já que não estava com ela. Os Taliban acusaram-na de homicídio e mandaram-na para uma prisão de mulheres em Kabul. Fechada numa cela que mal tinha espaço para uma cama, Pushtoon entrou em desespero.
"Não parava de gritar, de dizer que estava inocente, mas ninguém me ouvia", recorda.
Seis meses depois, fechou-se numa latrina minúscula e esquálida, acendeu um fósforo e segurou-o ao pé da roupa. "As chamas consumiram o tecido, queimaram o cabelo e o rosto e as mãos. Imolei-me/Pus-me em chamas/Queimei-me para morrer ali. Seria melhor que do que passar a vida na prisão. Não conhecia ninguém em Kabul. Ninguém me veio visitar. Tinha duas filhas e quatro filhos, eles estavam no Paquistão e eu tinha saudades deles." Mas não morreu. E poucos dias depois os Taliban libertaram-na. Ela tem cicatrizes nas mãos e uma marca na testa deixada pelas chamas. Ela esconde a marca com uma maquilhagem vermelha que algumas mulheres afegãs pintam acima das sobrancelhas. E tem um propósito. Fala do caso de uma mulher que foi ter com ela: "O marido não tinha trabalho. Passava os dias em casa e batia-lhe sempre. Partiu-lhe dois dentes e tapava-lhe a cara com uma almofada para enquanto lhe batia para os vizinhos não a ouvirem gritar." Muitas vezes estas mulheres, diz Pushtoon, têm medo que os maridos as matem e que desonrem a família se se queixarem. "Agora faço este trabalho porque se uma mulher diz que é inocente, alguém tem de a ouvir." Farsona Simimi seguiu um caminho diferente, gozando de grande popularidade como anfitriã de programas de televisão na cadeia Tolo, uma das novas estações privadas do Afeganistão. Ela usa o tom pouco ameaçador de programas como "Noiva" e "Bom dia feliz" para ajudar as mulheres a fazer valer os seus direitos e ajudar os homens a compreender os problemas que as mulheres enfrentam. "Hoje falei de dois assuntos no programa sobre a família: como educar uma criança e como tirar nódoas difíceis de uma camisa", diz, com um sorriso. Vestida de forma discreta com uma blusa branca a cobrir o pescoço e uma saia também branca até aos tornozelos, apenas o véu sugere as suas ideias avançadas: cobre tão pouco da cabeça, está tão puxado para trás que parece estar quase a cair, e deixa a descoberto uma madeixa do seu cabelo ligeiramente pintado.
"Quando começei na televisão, a minha família tinha medo de mim. As pessoas chegavam mesmo a perguntar ao meu marido, "Como é que tu a deixas fazer isto?""
Há um ano, uma das colegas de Simimi foi morta. Muitas pessoas desconfiam que foi alguém da própria família que a considerava demasiado moderna. Segundo alguns colegas da Tolo, ela usava blusas e calças de ganga justas e saía à noite para ir a bares. Levou três anos, mas o público de Simimi começou a confiar nela. As mulheres ligam-lhe e mandam-lhe e-mails, e quando ela vai a casamentos ou está em locais com muita gente, as pessoas vão ter com ela e fazem-lhe perguntas e contam-lhe histórias. O seu maior lamento é não poder mostrar na televisão as costelas partidas e as queimaduras e outros abusos que as mulheres sofrem. "Mas podemos falar destas coisas. Um dos nossos assuntos principais no programa sobre a família é o de homens que batem nas mulheres... E falamos sobre casamentos arranjados em várias perspectivas como quando um pai escolhe alguém e não discute o assunto com a mulher." Quando olha para a própria família, Simimi também enfrente alguns problemas. Quando estava a sair para o trabalho, o seu filho mais novo disse-lhe "Mamã, tens de usar um lenço maior". "Onde é que ele foi buscar esta ideia? Só tem oito anos, mas passa muito tempo com o pai e com o avô - eles é que lhe devem dizer estas coisas."
"Vai levar muito tempo para as coisas mudarem. Vamos ter de esperar que esta geração cresça e, talvez daqui a duas gerações, se consiga ver algumas mudanças." Fora de Kabul, nas cidades isoladas no meio do deserto, as perspectivas das mulheres são bem mais negras. Em Chakadera, a cidade de Sakhi, o aparecimento de um grupo de costura foi visto como um grande avanço. Permitiu às mulheres encontrarem-se e partilhar histórias. Mas as conversas muitas vezes acabam em casos de violência doméstica. Chakadera estava na linha da frente quando os Taliban tomaram o poder e as mulheres foram proibídas de sequer frequentar o mercado. Casavam com primos direitos porque eram as únicas pessoas com que se podiam encontrar. Agora, elas encontram-se numa sala para coser, para rir um pouco, chorar e darem apoio às que mais abusos sofrem. Mas ninguém sabe quanto tempo vai durar este grupo. No início do Outono, uma escola das proximidades foi incendiada. Se ocorrer outro ataque, as mulheres podem deixar de sair à rua, ou as filhas podem deixar de ir à escola. Para já, diz Sakhi, "todas podem vir aqui coser e tecer e esquecer as mágoas por duas ou três horas por semana". Uma destas mulheres, Malalai, de 29 anos, conseguiu sorrir um pouco, apesar de ela sentir pouco afecto pelo marido, que a proíbe de comprar roupas para os filhos sem a sua autorização. Casada aos 15, Malalai foi mãe de três rapazes e duas raparigas antes dos 24. E quer uma vida diferente para as suas meninas. "Quero que elas estudem, que trabalhem e que só depois se casem", diz. O que vai acontecer se os Taliban regressarem? Malalai passou as mãos por vários rolos de fio que estão no chão ao pé de si, derrubando cada uma como se elas representassem o grupo de costura, os sonhos para as filhas, a possibilidade de um futuro diferente.
"Acabou-se", diz. Acabou-se tudo.
"Na semana passada, tivémos aqui uma mulher. Antes dela, não tivémos ninguém durante várias semanas, diz, mostrando as marcas nos pulsos que ficaram de uma tentativa de suicídio há alguns anos numa prisão Taliban. "As mulheres têm medo de vir, mas nós não estamos autorizados a ir ter com elas."
"Os chefes da polícia não deixam. Dizem que é perigoso para as agentes", acrescenta. Cinco anos depois do fim da era dos Taliban, há novas oportunidades para as mulheres no Afeganistão, e esforços notáveis estão a ser feitos para melhorar o seu dia-a-dia, especialmente na capital Kabul. Melhorar o estatuto da mulher tem sido um objectivo primordial na política norte-americana no país. Condoleezza Rice, Secretária de Estado norte-americana, disse numa audição do congresso em 2005 que consagrar a igualdade para as mulheres na constituição afegã era um avanço importante para toda a região. Mas as conversas com dezenas de mulheres sugerem que cada passo em frente tem sido uma luta tremenda, A sociedade afegã continua a sentir-se bastante desconfortável com a ideia das mulheres conquistarem independência e autoridade. O reaparecimento dos Taliban tem provocado retrocessos em algumas conquistas, particularmente no sul. Se as incursões dos Taliban aumentarem, as mulheres irão perder terreno. Algumas famílias no sul que recentemente começaram a deixar as filhas ir à escola e as mulheres inscreverem-se em programas vocacionais retiraram-nas destas actividades por causa de ataques dos Taliban.
"O futuro das mulheres depende muito da segurança. Se a segurança se deteriorar, a situação das mulheres deteriora-se na mesma medida", diz Masuda Jalal, antiga ministra dos assuntos femininos. "Ao primeiro sinal de insegurança, o chefe de família quer proteger a mulher e os filhos, e a primeira coisa que faz é mantê-los em casa", acrescenta.As mulheres que conseguiram derrubar algumas barreiras não falam dos princípios constitucionais de igualdade. Antes, concentram-se no que o Corão diz das mulheres, e a importância das mães e dos lares, onde as mulheres mais velhas sempre tiveram posições de poder.
O objectivo, muitas vezes implícito, é convecer pais e irmãos, maridos e filhos que quando uma mulher tem mais poder, os homens também beneficiam. Esperam, pelo menos, que as suas filhas tenham mais escolha que elas tiveram.
As mulheres estão a aprender a conduzir, algumas a pedido dos respectivos maridos, para ajudar a família. Algumas abriram contas bancárias. Outras são presença regular como "talk show hosts" e apresentam a meteorologia e outros "news features". De acordo com Farsona Simimi, uma anfitriã muito popular de "talk shows", "está a acontecer uma revolução tranquila". Mas, acrescenta, "Não sei se vai ter sucesso." Afegão com formação e pessoas de organizações internacionais humanitárias dizem que o governo do presidente Hamid Karzai apoiado pelos EUA pouco mais fez que eliminar as restrições impostas pelos Taliban. Dos 25 membros do governo, apenas um é mulher e não há nenhuma entre os seus conselheiros mais próximos. Muitas mulheres afegãs dizem ter encorajado o presidente Karzai a fazer pequenas coisas, como fazer-se acompanhar pela mulher em ocasiões públicas, mas ele nunca o fez. Rahala Salim foi uma mulher que se tornou juiza nos anos 1980 durante o regime comunista e recorda o terror que foi quando os Taliban desmantelaram quaisquer vestígios de protecção das mulheres. "Como juiza, quando as mulheres vinham ter comigo a chorar porque tinham abusado delas, sentia que tinha a obrigação de defender os seus direitos", recorda Salim, que foi destituída do cargo pelos Taliban. Segundo as leis deles, acrescenta, "se um homem fosse acusado de violação, era a mulher que era encarcerada e culpada".
Pela sua formação em direito, Salim sabia que a Sharia, ou lei islâmica, dava às mulheres alguma protecção legal. O Corão e os "hadiths", os ditos do profeta Maomé, permitem várias interpretações. E o Islão antigo glofica algumas mulheres, incluindo a filha de Maomé Fátima, que é retratada como uma líder independente do seu povo.
"É preciso conhecer a verdadeira Sharia, temos de saber apontar as passagens do sagrado Corão e dizer "Aqui, leiam isto"", diz Salim. "Na história islâmica, os homens têm sido os chefes. Querem ser os chefes para sempre. É por isso que não querem que as mulheres apareçam em público, mas isso não é o Islão."
Esta visão do Islão como pilar de liberdade veio da mãe de Salim.
"A minha mãe não teve filhos e, por isso, o meu pai casou com outra mulher. A minha mãe ficou muito triste e a sua vida ficou muito mais difícil. E ela disse-me "Se não te educares, nunca conseguirás fazer frente aos homens. Tens de aprender o Islão para que possas lutar contra eles."
Durante a era Taliban, Salim começou a ensinar o Corão. Uma vez por semana, 70 mulheres juntavam-se em aulas, algumas vezes em casa de Salim, outras vezes em sítio incerto para que os Taliban não desconfiassem.
"Cozinhava qualquer coisa como se nos estivéssemos a juntar para uma refeição e, depois, recitávamos passagens do Corão e discutíamos questões islâmicas e assuntos políticos", recorda. Depois da fuga dos Taliban, Salim candidatou-se ao parlamento. Mas ela sabia que que iria precisar do apoio dos mullah e, quando foi eleita, pediu para se dirigir às famílias na mesquita. O apelo de Salim abriu as portas para fosse permitida a entrada às mulheres. Na sua região, as mulheres nunca lá tinham entrado. Ficavam em casa.
"Foi a primeira vez que as mulheres viram o interior de uma mesquita". diz. Depois, com a concordância dos mullah, pediu às famílias para começarem a mandar as filhas para a escola. Outras mulheres chegaram a conclusões semelhantes: para conseguirem convencer os homens a estarem do seu lado, precisavam de ter os mullah como aliados e o Islão como escudo. Jalal, antiga ministra das mulheres, organizou encontros de mullah para discutir as interpretações do Corão dos direitos das mulheres. Um encontro no Verão passado em Kabul juntou 100 mullah de várias zonas do país. Jalal também pediu a formação de assembleias de mulheres para trabalharem de perto com com os mullah locais. Para já, estas assembleias estão activas principalmente em Kabul e arredores. Em Chakadera, uma região na base das montanhas a cerca de uma hora do norte de Kabul, Maseema Sakhi funciona como ligação do Ministério dos Assuntos das Mulheres. Uma pequena e graciosa mulher de 45 anos, Sakhi estudou na universidade e é professora na escola primária local. Mas ela casou com um homem da cidade e vive numa casa de lama típica do Afeganistão com várias gerações da família, com galinhas e perús a correr pelo quintal. Tentou aproximações aos mullah locais e, agora, quando há problemas domésticos, eles já pensam na hipótese de ir ter com ela. Há pouco tempo, uma rapariga chegou à vila com roupas esfarrapadas e exausta. Tinha fugido da família do marido. Disse que tinha sido espancada e que tinha medo de morrer.
No passado, os anciãos e o mullah teriam obrigado esta rapariga a revelar a sua origem e ela seria "devolvida", quase que a condenando à morte. Desta vez, o mullah chamou Sakhi. "Ela andou pelas montanhas durante três dias e três noites sem parar. Tinha os pés desfeitos. Disse que tinha uma vida tão infeliz em casa que só queria ser devorada por um animal selvagem. Levámo-la ao departamento de assuntos femininos e ela agora está num abrigo e trata-me por mãe."
Pushtoon, a mulher polícia, nunca se viu como uma paladina. A sua mãe morreu quando era criança. Criada pelo pai na província de Logar, a sul de Kabul, aprendeu a ler de forma rudimentar. Aos 13 anos, casou-se com um homem muito mais velho. Aos 15, teve o primeiro de seis filhos. A família mudou-se para o Paquistão, onde o marido, quase sempre desempregado, envolveu-se com uma mulher mais nova. Deprimida, confusa e com pouca percepção de como os Taliban tratavam as mulheres, Pushtoon regressou a Logar para tomar posse de um pequeno terreno que o seu pai lhe deixara quando morreu. Ela queria vendê-lo para ajudar a familía. Mas os Taliban prenderam-na, com a acusação que ela teria morto o marido, já que não estava com ela. Os Taliban acusaram-na de homicídio e mandaram-na para uma prisão de mulheres em Kabul. Fechada numa cela que mal tinha espaço para uma cama, Pushtoon entrou em desespero.
"Não parava de gritar, de dizer que estava inocente, mas ninguém me ouvia", recorda.
Seis meses depois, fechou-se numa latrina minúscula e esquálida, acendeu um fósforo e segurou-o ao pé da roupa. "As chamas consumiram o tecido, queimaram o cabelo e o rosto e as mãos. Imolei-me/Pus-me em chamas/Queimei-me para morrer ali. Seria melhor que do que passar a vida na prisão. Não conhecia ninguém em Kabul. Ninguém me veio visitar. Tinha duas filhas e quatro filhos, eles estavam no Paquistão e eu tinha saudades deles." Mas não morreu. E poucos dias depois os Taliban libertaram-na. Ela tem cicatrizes nas mãos e uma marca na testa deixada pelas chamas. Ela esconde a marca com uma maquilhagem vermelha que algumas mulheres afegãs pintam acima das sobrancelhas. E tem um propósito. Fala do caso de uma mulher que foi ter com ela: "O marido não tinha trabalho. Passava os dias em casa e batia-lhe sempre. Partiu-lhe dois dentes e tapava-lhe a cara com uma almofada para enquanto lhe batia para os vizinhos não a ouvirem gritar." Muitas vezes estas mulheres, diz Pushtoon, têm medo que os maridos as matem e que desonrem a família se se queixarem. "Agora faço este trabalho porque se uma mulher diz que é inocente, alguém tem de a ouvir." Farsona Simimi seguiu um caminho diferente, gozando de grande popularidade como anfitriã de programas de televisão na cadeia Tolo, uma das novas estações privadas do Afeganistão. Ela usa o tom pouco ameaçador de programas como "Noiva" e "Bom dia feliz" para ajudar as mulheres a fazer valer os seus direitos e ajudar os homens a compreender os problemas que as mulheres enfrentam. "Hoje falei de dois assuntos no programa sobre a família: como educar uma criança e como tirar nódoas difíceis de uma camisa", diz, com um sorriso. Vestida de forma discreta com uma blusa branca a cobrir o pescoço e uma saia também branca até aos tornozelos, apenas o véu sugere as suas ideias avançadas: cobre tão pouco da cabeça, está tão puxado para trás que parece estar quase a cair, e deixa a descoberto uma madeixa do seu cabelo ligeiramente pintado.
"Quando começei na televisão, a minha família tinha medo de mim. As pessoas chegavam mesmo a perguntar ao meu marido, "Como é que tu a deixas fazer isto?""
Há um ano, uma das colegas de Simimi foi morta. Muitas pessoas desconfiam que foi alguém da própria família que a considerava demasiado moderna. Segundo alguns colegas da Tolo, ela usava blusas e calças de ganga justas e saía à noite para ir a bares. Levou três anos, mas o público de Simimi começou a confiar nela. As mulheres ligam-lhe e mandam-lhe e-mails, e quando ela vai a casamentos ou está em locais com muita gente, as pessoas vão ter com ela e fazem-lhe perguntas e contam-lhe histórias. O seu maior lamento é não poder mostrar na televisão as costelas partidas e as queimaduras e outros abusos que as mulheres sofrem. "Mas podemos falar destas coisas. Um dos nossos assuntos principais no programa sobre a família é o de homens que batem nas mulheres... E falamos sobre casamentos arranjados em várias perspectivas como quando um pai escolhe alguém e não discute o assunto com a mulher." Quando olha para a própria família, Simimi também enfrente alguns problemas. Quando estava a sair para o trabalho, o seu filho mais novo disse-lhe "Mamã, tens de usar um lenço maior". "Onde é que ele foi buscar esta ideia? Só tem oito anos, mas passa muito tempo com o pai e com o avô - eles é que lhe devem dizer estas coisas."
"Vai levar muito tempo para as coisas mudarem. Vamos ter de esperar que esta geração cresça e, talvez daqui a duas gerações, se consiga ver algumas mudanças." Fora de Kabul, nas cidades isoladas no meio do deserto, as perspectivas das mulheres são bem mais negras. Em Chakadera, a cidade de Sakhi, o aparecimento de um grupo de costura foi visto como um grande avanço. Permitiu às mulheres encontrarem-se e partilhar histórias. Mas as conversas muitas vezes acabam em casos de violência doméstica. Chakadera estava na linha da frente quando os Taliban tomaram o poder e as mulheres foram proibídas de sequer frequentar o mercado. Casavam com primos direitos porque eram as únicas pessoas com que se podiam encontrar. Agora, elas encontram-se numa sala para coser, para rir um pouco, chorar e darem apoio às que mais abusos sofrem. Mas ninguém sabe quanto tempo vai durar este grupo. No início do Outono, uma escola das proximidades foi incendiada. Se ocorrer outro ataque, as mulheres podem deixar de sair à rua, ou as filhas podem deixar de ir à escola. Para já, diz Sakhi, "todas podem vir aqui coser e tecer e esquecer as mágoas por duas ou três horas por semana". Uma destas mulheres, Malalai, de 29 anos, conseguiu sorrir um pouco, apesar de ela sentir pouco afecto pelo marido, que a proíbe de comprar roupas para os filhos sem a sua autorização. Casada aos 15, Malalai foi mãe de três rapazes e duas raparigas antes dos 24. E quer uma vida diferente para as suas meninas. "Quero que elas estudem, que trabalhem e que só depois se casem", diz. O que vai acontecer se os Taliban regressarem? Malalai passou as mãos por vários rolos de fio que estão no chão ao pé de si, derrubando cada uma como se elas representassem o grupo de costura, os sonhos para as filhas, a possibilidade de um futuro diferente.
"Acabou-se", diz. Acabou-se tudo.
Fonte: Texto Alissa J. Rubin e Fotos Rick Loomis - Los Angeles Times (Publico)
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